Drogas: Política de Estado.
De tempos em tempos sou questionado sobre o porquê da escolha que fiz pela advocacia criminal. Embora já atue neste campo do direito há mais de vinte anos, ainda me deparo com pessoas que perguntam como consigo defender um “bandido”? Para muitos, causa estranheza a defesa de cidadãos acusados da prática de crimes.
A questão é complexa e passa, obrigatoriamente, pela distinção entre moral e direito.
Este é um dos problemas mais complexos da filosofia jurídica.
Rudolf von Ihering, jurista alemão do século XIX (1818/1892) que muito influenciou a cultura jurídica em todo o mundo ocidental, sobre o tema, manifestou-se dizendo ser esta questão o “Cabo Horn” da ciência do Direito, associando a discussão à região de difícil navegação, situada ao ponto mais meridional da América do Sul, cuja travessia se fazia necessária para os navios que partiam do Atlântico ao Pacífico antes da abertura do Canal do Panamá. Segundo o jurista:
“O direito não é uma ideia lógica, porém ideia de força; é a razão porque a justiça, que sustenta em uma das mãos a balança em que pesa o direito, empunha na outra a espada que serve para fazê-lo valer. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é o direito impotente; completam-se mutuamente: e, na realidade, o direito só reina quando a força despendida pela justiça para empunhar a espada corresponde à habilidade que emprega em manejar a balança”.
Mesmo antes, Confúcio já demonstrava conhecer o gravame da pena o que, certamente viria ser uma das maiores preocupações da Criminologia.
Hipócrates, o pai da medicina, creditava que todo o crime assim como o vício é fruto da loucura. Lançando assim as bases sobre a imputabilidade ou o princípio da irresponsabilidade penal do homem insano.
O grande oráculo grego, Sócrates, disse através de seu discípulo Platão, in verbis: “que se devia ensinar aos indivíduos que se tornavam criminosos como não reincidirem no crime, dando a eles a instrução e a formação de caráter de que precisavam”.
Aristóteles em sua obra “A Política” ressaltou que a miséria engendra rebelião e delito. O homem na visão aristotélica não é plenamente livre, pois é submetido à razão que controla a sua sensibilidade. Os delitos mais graves eram os cometidos para possuir o voluptuário, o supérfluo.
Nos bancos da faculdade, mestres recomendam a leitura de César Bonesana, o Marques de Beccaria que assim como Montesquieu, Voltaire e Rousseau teve a ousadia de afrontar os costumes penais da época, publicando “Dos delitos e das penas”, uma obra clássica e de leitura obrigatória para todos que se interessem pelas ciências criminais.
Tal obra teve o mérito de alterar toda a penalogia sendo precursora da Escola Clássica do Direito Penal.
Cito alguns pontos principais da obra de Beccaria, a saber:
1- Aos juízes não deve ser dado interpretar as leis penais;
2- A atrocidade das penas opõe-se ao bem público;
3- As acusações não podem ser secretas;
4- As penas devem ser proporcionais aos delitos;
5- Não se pode admitir a tortura do acusado por ocasião do processo;
6- Somente os magistrados é que podem julgar os acusados.
7- O objetivo da pena não é atormentar o acusado e sim impedir que ele reincida e servir de exemplo para que outros não venham a delinquir.
8- As penas devem ser previstas em lei.
9- O roubo é ocasionado geralmente pela miséria e pelo desespero.
10- As penas devem ser moderadas.
11- Mais útil que a repressão penal é a prevenção dos delitos.
12- Não tem a sociedade o direito de aplicar a pena de morte nem de banimento.
13- O réu jamais poderá ser considerado culpado antes da sentença condenatória.
Feitas estas considerações para ponderações, coloco aqui para sua análise o dever moral do profissional do direito criminal defender o direito sagrado da defesa do seu cliente. Explico.
Nosso escritório atende os interesses na defesa criminal de empresas nacionais e multinacionais, além de pessoas físicas, Aqui, vou me ater a um caso específico: o atendimento de um cliente pessoa física, acusado pelo Ministério Público de tráfico de entorpecentes.
Não é difícil ocorrer situações onde, funcionários, gerentes e diretores de empresas clientes procuram os serviços do escritório para o atendimento de questões de cunho pessoal. Vez ou outra filhos e filhas acabam por se tornar nossos clientes, por envolvimento na questão das drogas.
Saliento que este problema de uso/tráfico de drogas está muito próximo de qualquer um de nós.
É neste exemplo que aparece o primeiro questionamento apontando para a dúvida: usuário ou traficante de drogas? Prima facie, para os mais moralistas, certamente é caso de tráfico.
São casos de complexa solução, muitas das vezes. O aspecto emocional dos envolvidos supera qualquer razão. É um dos mais clássicos casos do chamado atendimento “jurídico – psicológico”.
Certo dia, pela manhã, bem cedinho, recebi a ligação de uma senhora a qual me foi indicada por um colega de profissão, informando que seu filho havia sido preso na noite anterior, portando certa quantidade de entorpecente. Mais especialmente haxixe. A droga estava separada em três porções dentro de sua mochila. Mais um “detalhe”: ele portava ainda uma balança eletrônica de precisão, daquelas utilizadas na cozinha da sua casa.
A prisão em flagrante havia se dado na noite anterior e logo pela manhã, em reunião no escritório, tive uma longa e detalhada conversa com a mãe. Entendi por bem aceitar o caso.
Em seguida fui para o Fórum da Barra Funda onde são realizadas as audiências de custódia.
Por força de um Provimento conjunto firmado entre o Tribunal de Justiça de São Paulo e a Corregedoria Geral da Justiça o que determina, em seu artigo 1º, em cumprimento ao artigo 7º, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), a apresentação da pessoa detida em flagrante delito, até 24 horas da sua prisão, para participar da audiência de custódia, onde o juiz decidirá pela manutenção da prisão em flagrante, podendo converte-la em prisão preventiva, relaxa-la ou substituí-la por uma medida cautelar.
No exemplo a que me refiro, a prisão em flagrante foi convertida em prisão preventiva, o que fez o cliente permanecer encarcerado por conta da acusação de tráfico de entorpecentes, sendo em seguida denunciado pelo Ministério Público.
Depois de conversar longamente com o réu, tive a nítida e clara convicção de que a acusação de tráfico estava na contramão da verdade dos fatos.
Neste momento, contando com a importante atuação do meu sócio Bruno Ikaez, iniciamos uma longa etapa com o intuito de demonstrar e comprovar a verdade com o claro objetivo de absolver o réu da inapropriada acusação de tráfico.
Três meses se passaram até a realização da audiência de instrução e julgamento. Rápido para os que estão em liberdade. Longo, muito longo, para os que se encontram trancados na prisão.
Após a audiência, com a manifestação da promotoria e da defesa, foi proferida a sentença.
Reconheceu-se a tese da defesa de desclassificação do crime de tráfico tendo a ele sido imputado o crime de uso de drogas – prestação de serviços para a comunidade (artigo 28, inciso II, da Lei de Drogas), cuja legalidade, hoje, encontra-se em discussão perante o STF.
Em seguida, finalmente, o cliente foi posto em liberdade.
Mas, não estamos satisfeitos com a condenação.
Como alguém que permanece no cárcere por três meses e meio, acusado de crime que não cometeu, pode ainda ser condenado a prestar serviços para a comunidade? Não se trata aqui de questionar o espírito da lei que obriga a prestação de serviços, mas sim o tempo que ficou privado de sua liberdade.
Este caso chamou especial atenção pelas manifestações preliminares. Notamos um pré-julgamento por parte da maioria. Três porções de haxixe e uma balança? Certamente é caso de tráfico, apontavam os operadores do direito envolvidos no caso. Isto causa enorme indignação! O (falso) moralismo exacerbado leva o indivíduo a radicalizar.
O minucioso trabalho desenvolvido ao longo do processo demonstrou a verdade com a serenidade que casos como este requerem.
Vejam outra situação sobre o mesmo tema: o caso do mecânico Francisco Benedito de Souza preso em uma cadeia provisória de Diadema, na Grande São Paulo, dividindo uma cela com outros 32 detentos e que durante uma inspeção, foram encontradas três gramas de maconha.
Este caso está na pauta de Julgamentos do Supremo Tribunal Federal e poderá levar a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal no País.
Com uma extensa ficha criminal, que inclui crimes como porte arma, roubo, contrabando, mas nada relacionado a drogas, Souza foi enquadrado pelo artigo 28 da Lei Antidrogas, que criminaliza porte de drogas para consumo pessoal.
Recebeu uma nova pena de dois meses de serviços à comunidade. O advogado responsável pelo caso decidiu recorrer ao STF. No dia 20 de agosto, o ministro-relator do caso, Gilmar Mendes, votou pela inconstitucionalidade do artigo que penalizou Souza. A interpretação de Mendes é que a criminalização estigmatiza o usuário e compromete medidas de prevenção e redução de danos para toda sociedade. Também argumentou que a lei vigente impõe a rotulação de criminosos a jovens por uma conduta que, no máximo, implicaria em autolesão.
O debate sobre uma nova política de drogas no Brasil avançou, mas foi mais uma vez interrompido na semana passada. Desta vez, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Teori Zavascki pediu vista do processo. O julgamento foi paralisado com três votos favoráveis ao recurso, mas com uma divergência entre os magistrados: enquanto o relator Gilmar Mendes defendeu o fim de punições para os portadores de qualquer droga, Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin defenderam a mudança apenas para a maconha. A discordância dividiu especialistas.
Durante seu voto, Barroso propôs que aqueles flagrados com até 25 gramas e seis plantas fêmeas de maconha não sejam enquadradas como traficantes. Depois disso, o debate na sessão passou a ser se a descriminalização atingiria só a erva ou todas as outras drogas consideradas ilícitas.
Pois bem.
Inegavelmente a questão das drogas é de políticas de Estado que deve cumprir o seu papel com medidas de prevenção e redução do uso o que se mostra absolutamente insuficiente até aqui.
Cadeias devem abrigar condenados que efetivamente cometeram crime graves e de repercussão social colocando em risco a garantia da ordem pública. Usuários de droga necessitam é de tratamento médico, tratamento psicológico e apoio familiar.
É certo que o artigo 28 da Lei de Drogas não prevê pena privativa de liberdade.
Porém, a problemática gira em torno do encarceramento preventivo e o tratamento aos quais o usuário é submetido enquanto o processo ainda não foi decidido, caracterizando verdadeira antecipação de pena por crime que não cometeu.
Assim é que, para o nosso cliente, que acaba de ser posto em liberdade, que nos faz sentir em nossas veias o prazer da advocacia que luta por justiça, deixo aqui uma frase de Nelson Mandela para reflexão:
“Não há nada como regressar a um lugar que está igual para descobrir o quanto a gente mudou.”
Aos demais, que não acreditavam em nossa tese, menos (falso) moralismo, mais sensibilidade e, principalmente, humildade. Nosso mundo precisa disso!
RODNEY CARVALHO DE OLIVEIRA
Boa reflexão num país carente de enfrentamentos reais de seus problemas. Onde a administração/controle do uso de drogas é feita pelo Estado, avança-se na neutralização do tráfico. Eventuais problemas entre os dependentes devem ser tratados como casos de saúde, e não mais como caso de polícia.
Meu abraço,
FR
Parabéns! muito claro o raciocínio.
Até onde o Estado pode e deve decidir pelo cidadão?
abraços
Rodney, excelente texto e reflexão.
Parabéns pela importante vitória.
Siga na busca pela justiça.
Abraços.
Rafael Salmeron e equipe Kimura | Salmeron Advogados
Muito bom, em especial a recomendação quanto a humildade. Nos brasileiros precisamos rever conceitos. Isto só é possivel com humildde para aceitar os erros historicos e culturais que temos cometido.
Luciano,
Obrigado por seu comentário!
Rodney, Todo cliente quando busca um advogado é porque dele precisa e confia. A luta pelo direito é a busca da verdade.
“ Os desafios não são difíceis porque tentamos: é por não tentarmos que são difíceis” – (Sêneca).
“Quando em sua vida nada restar, não cruze os braços, pois o maior homem do mundo morreu de braços abertos”.
“Acreditar em si mesmo é o primeiro segredo do sucesso”.
“Se cada um dos seus dias for uma centelha de luz, no fim da vida você terá iluminado uma boa parte do mundo. ” (Merlo).
“Há aqueles que lutam um dia; e por isso são bons; há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons; há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda; porém há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis. ” (Bertold Brecht).
O juramento do advogado é sagrado.
Pois tudo é o que você fez cumprir. Ai esta o direito sagrado de defesa. Parabéns seu trabalho foi coberto de honradez e era isso que seu cliente e familiares esperavam. Belíssima lição de direito. Continue sempre assim, siga por esse caminho.
Para entender a Justiça, o Estado e a Justiça a partir do Estado, é preciso ler Kafka e perceber como se erige um labirinto com infindáveis caminhos, inúmeras portas, incontáveis becos interrompidos e uma única saída.
O advogado, para falar modernamente, tem para o seu cliente a função de um drone que se eleva acima das paredes sem teto e, com sua visão ampla da cena e a sua valiosa experiência, toma pela mão o seu cliente “Josef K.” e o conduz por todos os necessários corredores da justiça até a porta da saída, em realidade, o retorno ao convívio social.
Críticos do trabalho do criminalista tendem a imaginá-lo como um super-drone, capaz de elevar “Josef K.” acima das paredes, transportando-o para fora do labirinto, burlando o cumprimento da pena. Sabemos que não é assim que acontece.
O Criminalista tem a responsabilidade de proporcionar ao seu “Josef K.” a aplicação da pena mais justa, que sempre será o caminho mais curto para a saída, fazendo encerrar
O PROCESSO!